A próxima geração de carros não terá pneus run flat… mas continuará sem o estepe!

A próxima geração de carros não terá pneus run flat… mas continuará sem o estepe!

Carlos Barcha é especialista em pneus com 20 anos de experiência no setor automotivo, fundador e CEO da The Consulting Business Solutions e, também, Gerente Técnico da Michelin América do Sul. As opiniões e informações aqui expressas são pessoais e não refletem necessariamente o posicionamento destas empresas

Seguida da abolição do estepe na mesma dimensão dos pneus rodantes, houve a popularização do pneu equipado com a tecnologia que permite rodar sem ar, até então comum em veículos importados de luxo, que ficou conhecida como run flat. Dependendo do fabricante, esses pneus são comercializados com outros nomes como RunOn Flat, Self Supporting Runflat, Pax System, Zero Pressure ou Zero Pressure System.

Sim, é equivocado pensar que esse tipo de pneu é usado hoje apenas neste seguimento. E sim, essa tecnologia já está obsoleta e sendo descontinuada globalmente. Mas não, isso não significa que as inúmeras desvantagens pontuadas à exaustão em artigos, blogs, sites ou revistas especializadas sobre a aplicação desta tecnologia em um país continental e subdesenvolvido como o Brasil surtiram efeito e teremos o bom e velho estepe de volta, mesmo que seja na sua versão para uso temporário.

O que veremos nas próximas gerações de carros urbanos são pneus com selante, que permitirá a auto vedação em caso de furo, evitando assim a perda de ar e mantendo a pressão de inflação do pneu. Esta tecnologia, em linhas gerais, possui os mesmos benefícios dos pneus run flat e, também, a famigerada desvantagem em caso de rasgo ou danos na lateral.

Mas, antes que apontemos nossos canhões contra os pneus com selante, vamos fazer uma reflexão baseada em números para entender se a remoção do pneu reserva é uma decisão equivocada das montadoras. A The Consulting pediu para a equipe do TireHub dados sobre a quantidade de reclamações relacionadas à impactos e danos na lateral dos pneus. A tarefa foi bastante árdua porque as fontes de dados são escassas, as informações não são compartimentadas e, também, o Brasil é um país com dimensões continentais e possui regiões com diferentes níveis de desenvolvimento. Mas tarefa dada é missão cumprida!

O mercado total de pneus para veículos leves em 2019 fechou pouco abaixo das 37 milhões de unidades e foram recuperadas de fontes públicas de consulta cerca de 2.000 reclamações apenas. Destas, 35% estão relacionadas à impactos ou danos na lateral. Infelizmente, não foi possível detalhar os tipos de danos tampouco dividir as reclamações por região. Porém, ficou evidente que não existe fabricante de pneu imune às severas condições de rodagem no Brasil, pois estas reclamações correspondem de 26% a 43% do total que recebem anualmente.

Do mercado de 37 milhões de pneus, vamos assumir que 3% são do tipo run flat e aumentar em 10 vezes o número de reclamações por impactos e danos, mantendo a mesma taxa de 35% para danos. Teremos 600 casos anuais. Mesmo aplicando o volume assumido de 3% de pneus run flat sobre a frota circulante de quase 70 milhões de automóveis, teríamos apenas 0,002% de casos!

Do lado técnico, existem os seguintes pontos:

  1. O conjunto roda/pneu sobressalente acrescenta, em média, 20 kg de peso adicional ao veículo;
  2. O pneu reserva deverá ser trocado independentemente do seu uso por questões de segurança, gerando custo adicional aos consumidores e um passivo ambiental;
  3. Consumidores demandam volume de porta-malas e reclamam ter de esvaziá-lo para acessar o estepe;
  4. O estepe fora do carro é objeto de roubo e de despesas adicionais aos consumidores;
  5. Mesmo que o carro disponha de um estepe do mesmo tamanho dos rodantes, estima-se que em mais da metade das situações o motorista não conseguirá instalá-lo, seja por estar murcho, por falta de conhecimento ou força, ferramentas inadequadas e etc.

Portanto, para a esmagadora maioria dos veículos leves comercializados no Brasil, remover o estepe é o caminho correto, do ponto de vista econômico, ecológico e, inclusive, do consumidor. Não significa que as cerca de 1.200 pessoas estatisticamente prejudicadas devam ser ignoradas: se desejarem, podem adquirir um conjunto roda/pneu de uso temporário e mantê-lo à disposição em seus porta-malas.

Ao invés de bradarmos contra uma tendência global irreversível e pressionarmos o poder público para que interfira na legislação para obrigar a manutenção do estepe, devemos exigir que os montantes arrecadados em impostos sejam destinados corretamente para que os investimentos necessários em manutenção e infraestrutura sejam realizados. Só assim teremos estradas e condições compatíveis com os níveis de tecnologia e eficiência que estão sendo impostos para os novos veículos.

E se ainda quiser insistir que abolir o estepe deveria ser proibido por lei, prepare-se: em 2030, não haverá mais veículos movidos a motores de combustão interna na Europa. Para você, fica a pergunta: devemos também ser contra a utilização de veículos híbridos, elétricos ou movidos a hidrogênio no Brasil por não termos infraestrutura para suportar estas novas tecnologias da mobilidade do futuro?

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